“A direita tradicional está morrendo e pode ser substituída pelo fascismo”. Entrevista com Sabrina Fernandes

IHU

Sabrina Fernandes veio a Lisboa participar de uma conversa sobre “a alternativa internacionalista diante da crise autoritária”. A socióloga, brasileira, pesquisadora, educadora, militante marxista e youtuber de esquerda não perdeu tempo até avisar a plateia que a sanha da extremadireita sempre foi uma carta que os interesses econômicos guardaram para a altura certa. Ou seja, os últimos seis anos não foram uma anormalidade no curso da História.

Entre as paredes do Museu do Aljube, antiga prisão fascista, a frase poderia parecer um truísmo sem a ressalva de que essa crise também é democrática e que aquilo a que temos assistido não é mais que “o aprofundamento do sistema capitalista através dos germes autoritários da democracia liberal”. Para Sabrina Fernandes, os últimos anos “carregaram várias contradições que abriram brechas” por onde entraram os autoritarismos – e é preciso aprender o porquê.

Fora todos esses diagnósticos, Sabrina Fernandes está, agora, mais focada nas alternativas econômicas, políticas e sociais. Atingindo uma notoriedade particular com o seu canal de YouTube, onde acumula quase meio milhão de inscritos, o nome desse seu espaço de educação e politização é insuspeito: Tese Onze. Trata-se de uma referência à tese aforista de Marx: “os filósofos têm-se limitado a interpretar o mundo; é preciso transformá-lo”.

Em conversa com o Setenta e Quatro, criticou o esvaziamento da esquerda brasileira e a sua despolitização, bem como o perigo do messianismo que envolve Lula da Silva, que terá de governar sob vários antagonismos se regressar à presidência em 2023. Sabrina Fernandes puxou do seu ecossocialismo como bússola para entender que ferramentas estão disponíveis para se mudar o mundo (ou para evitar que ele acabe). E, por fim, sentenciou, apelando ao otimismo da vontade sobre o pessimismo da razão: “a nossa construção de alternativas tem de ser tão radical quanto o nosso medo do que pode vir amanhã”.

A entrevista é de João Biscaia, publicada pelo projeto de informação digital português Setenta e Quatro, 13-07-2022.

Eis a entrevista.

Veio a Portugal falar sobre as alternativas internacionalistas de esquerda e a crise autoritária global. Qual a posição do bolsonarismo neste panorama?

bolsonarismo representa uma fase específica do autoritarismo do século XXI que chega com a pretensão de ser antissistêmico, mesmo participando em eleições. Sabemos que há uma vontade antidemocrática nessa participação, mesmo que não se traduza num golpe militar, porque o bolsonarismo consegue tirar vantagens de outras ferramentas. É impossível falar da ascensão do bolsonarismo sem falar, por exemplo, de Donald Trump e de Steve Bannon e de todo o processo de influência na maneira como as pessoas percebem a realidade em uma era de pós-verdade.

bolsonarismo também bebe muito de fontes do passado. A questão nacionalista é muito importante, bem como a homenagem constante à ditadura militar relacionada com a presença de militares no seu governo. Também não podemos deixar de enfatizar o papel do fundamentalismo religioso e do conservadorismo enquanto componentes centrais do autoritarismo brasileiro contemporâneo.

É comum referir-se à posição periférica e dependente do Brasil no sistema capitalista global. Isso também é visível na criação do bolsonarismo?

Quando falamos de “imperialismo ecológico” entendemos tanto a influência que vem de fora como as dinâmicas nacionais. O papel dos Estados Unidos é central. Sabemos que um governo nos EUA tanto pode estar mais à direita como levemente mais ao centro que irá sempre tentar pactuar com um governo autoritário no Brasil, simplesmente porque há interesse na transferência de mercadorias ou na influência geopolítica.

Por conta do papel das mercadorias, o Brasil avança, a partir da sua posição de capitalismo dependente, pesadamente para cima da natureza. Isso é algo que se dá no território há 522 anos, mas estamos numa fase específica agora com Bolsonaro. Mais abertamente violenta na mercantilização da natureza, atacando diretamente figuras que defendem a terra e o território, no Brasil e em toda a América Latina.

É preciso ter cuidado em não tratar o interesse de Bolsonaro na Amazônia – quando ele diz que não há desmatamento ou que a situação não está tão ruim quanto é passada para “fora” – como simples negacionismo. É uma grande preocupação sua.

Ao mesmo tempo que mente, tenta trazer legitimidade para o que está acontecendo em relação ao garimpo ilegal e ao avanço do agronegócio, validando-o perante a sua própria base de apoio. Não é possível explicar como Bolsonaro conseguiu se manter nesses últimos quatro anos sem falar do apoio do agronegócio e da bancada ruralista dentro do Congresso.

O seu negacionismo atua enquanto todo o aparato de proteções legais e de fiscalização é desmontado para abrir caminho à apropriação da floresta. Desde o ano passado que o ministro do ambiente, Joaquim Leite, se posicionou de forma a colocar o Brasil como o “futuro da economia verde”, falando que é possível conciliar os interesses do agronegócio com os interesses da proteção ambiental. Bastaria relacionar isso com o mercado de crédito de carbono para entender que há interesses financeiros aí. É um negacionismo que serve uma proposta de capitalismo verde, por um lado, e uma proposta de enriquecimento, por outro.

É costume o governo de Bolsonaro ser chamado de negacionista, negligente e incompetente, mas até onde pode ser considerado um modo de agir de uma máquina bem azeitada, que usa essa aparência inábil para se livrar de responsabilizações maiores?

Há um movimento duplo que parece ser antagônico. Ao mesmo tempo que Bolsonaro diz querer colaborar com outras instituições para resolver certos problemas, faz isto para poder se enfiar dentro do que acontecendo e retirar o poder e a autonomia daqueles que realmente estão, por exemplo, protegendo a Amazônia.

As comunidades indígenas estão sendo muito afetadas. Não somente pelo executivo e os ataques diretos de Bolsonaro, mas porque este também aparelhou a FUNAI [Fundação Nacional do Índio] de forma a que muitos dos indigenistas que nela trabalhavam, alguns diretamente com as lideranças indígenas, fossem desmobilizados. Isso atrapalha toda a política indigenista voltada para a demarcação dos territórios e para a autonomia dos povos indígenas.

Ao mesmo tempo, percebemos que essa movimentação do Bolsonaro não é voltada para defender os interesses nacionais e vai contra os ideais nacionalistas com que ele controla a questão militar. A sua política é completamente entreguista, baseada na alta exploração e na livre atuação das multinacionais, desde a mineração em territórios indígenas, onde há mineradoras canadenses participando no processo, à reestruturação do agronegócio.

Temos um país tomado pela fome severa e a insegurança alimentar. Mais da metade dos brasileiros estão em situação de insegurança alimentar, de leve a grave, sendo o Brasil um país produtor. A economia política é central para explicar como isso é possível e impedir-nos de cair na ideia de que as coisas estão ruins porque esse é um governo que não sabe fazer as coisas.

Essa aparência meio desastrada, a forma chula de falar de Bolsonaro, a forma como se comporta, tudo isso é feito para tentar passar a ideia de que ele é parte de um povo específico que representaria esses valores conservadores.

Há gente dentro do governo executando essa política entreguista muito minuciosamente. Não é por acaso, nada ali se dá por trapalhada, nada se faz acidentalmente. Mesmo quando para a imprensa as coisas parecem um pouco estranhas, quando Bolsonaro diz algo que um chefe de Estado não deveria dizer, isso serve o propósito de atiçar a sua base, para aumentar a fidelização a todo esse processo. Porque ele sabe que se você fala uma coisa que é mentira, para desmentir dá muito mais trabalho e demora dez vezes mais tempo.

Há um viés de confirmação muito pesado. Por mais que a base de apoio do Bolsonaro tenha derretido, há uma parte que continua fiel porque chegou ao ponto de qualquer crítica a Bolsonaro, ao seu governo ou àqueles ao seu redor ser imediatamente tomada como mentira.

Como é que este projeto de poder declaradamente autoritário concilia a sua imagem de movimento popular com as políticas de morte que vimos durante a pandemia ou com a abordagem extrativista da Amazônia?

Mais uma vez, vemos muito esse jogo entre a aparência e a política concreta. Quando Bolsonaro chega ao governo – e mesmo antes, durante a campanha eleitoral – passa a ter alguém ao seu lado fazendo interpretação em língua gestual, tentando alcançar a comunidade surda do Brasil. A própria primeira-dama, Michelle Bolsonaro, no seu primeiro discurso demonstra um certo conhecimento de língua gestual. Parecia que esse governo tinha uma preocupação especial.

Ao mesmo tempo, todavia, é um governo que interveio no sistema educacional brasileiro de uma forma segregadora em relação a pessoas com deficiência e que hoje em dia promove o que se chama o “rol taxativo”, uma lista restrita de tratamentos complementares aos praticados no Sistema Único de Saúde (SUS) que podem ser feitos no setor privado. Essa política é predatória para pessoas que precisam de tratamentos não-tradicionais, especialmente pessoas com deficiências, doenças crônicas, doenças raras ou em situações terminais, e cujos tratamentos podem ser excluídos pelos seus planos de saúde.

O brasileiro já está em uma situação muito complicada. Existe um sistema de saúde que, no papel, é excelente. Há gente a construí-lo e a mantê-lo de forma aguerrida no cotidiano, para tentar aguentar as coisas, mas o SUS está passando por um desmantelamento proposital já há muito tempo.

Tudo isso por cima dos efeitos de uma pandemia que o governo permitiu que se descontrolasse.

Tivemos mais de 600 mil brasileiros mortos, um atraso gigantesco na vacinação e um processo de investigação por corrupção na compra da vacina que, entretanto, foi interrompido e atrapalhou a vacinação ainda mais. Tudo é emparelhado, na aparência, com uma política antivacinas que Bolsonaro amplia para a sua base de apoio. Afirma que ninguém pode interferir com o que é feito no país, mas, na verdade, ele sabe que há uma negociação por detrás de tudo isso. Há muitas artimanhas discursivas escondidas atrás daquilo que chamamos fascismo.

E para se falar de fascismo temos que falar de racismo capitalismo. A política indígena é racista, tendo em vista o extermínio das populações indígenas. O racismo também é um pilar central da política de encarceramento em massa, um processo que continua em força. A flexibilização do porte de armas que Bolsonaro patrocinou ajuda a acirrar conflitos sociais que já são violentos, como a falida guerra às drogas. Mas, depois, cobre-se isso tudo com aquela aparência de: “não, nós estamos muito preocupados com tudo isso”.

A ex-ministra Damares Alves, aparente defensora dos direitos das mulheres e das famílias, foi central nesse processo. Parecia estar preocupada em proteger as comunidades indígenas, mas promovia uma perspectiva de assimilação e de desrespeito à cultura indígena. Promovia o etnocídio com a ideia de trazer as pessoas indígenas para as cidades e para catequizá-las. Estaríamos voltando ao processo colonial de pegar a pessoa indígena, fazer uma lavagem cerebral e adaptá-la, “trazê-la à civilização” e àquilo que deve ser um cidadão brasileiro.

O brasileiro de bem?

Sim, uma noção que já estava presente na sociedade brasileira para promover a segregação, mas que com Bolsonaro passa a ser consolidada numa política de governo. O cidadão de bem será um homem branco e conservador e essa figura segue sentindo-se representada por Bolsonaro. Todas as outras políticas são políticas que pioram as vidas de negros, de indígenas e de mulheres.

Tem notado influências desse modo de agir de Bolsonaro em outros países? Como interpreta essa possível influência contracorrente, do sul para o norte?

bolsonarismo é um laboratório. Mesmo com uma política horrorosa, Bolsonaro não foi derrubado. A esquerda brasileira está simplesmente contando os dias para a hipotética vitória eleitoral de Lula da Silva. A política de retirar Bolsonaro do poder foi abandonada em 2021 e todo o mundo se preparou para as eleições de 2022. Os retrocessos acumulam-se e talvez não saibamos por onde começar a reparar os estragos, caso o próximo governo seja progressista. Quatro anos não serão suficientes. É um laboratório de sucesso. Há vários lugares na Europa olhando para Bolsonaro para tentar entender o que funciona ou não na mobilização do eleitorado.

A outra ligação é a ideia de voltar ao passado. Isso está presente na extrema-direita de todo o mundo, através dos nacionalismos específicos. Para fazer isso, há que identificar o “outro”. No caso de países periféricos, o “outro” é interno. É o negro, o indígena, aquele que está nas margens das sociedades e que é alvo fácil de pânicos morais. No caso dos países centrais, o “outro” geralmente é o que cruza uma fronteira. O imigrante, o refugiado.

A mobilização contra o “outro” é algo que Bolsonaro sempre fez com muito sucesso. Reavivou medos na sociedade brasileira que já não estavam tão presentes assim. Implantou um medo da “ideologia de gênero”, junto com o fundamentalismo religioso e figuras como Olavo de Carvalho.

É óbvio que há 15, 20 anos existia homofobiatransfobia e machismo, mas conseguir uma tal mobilização ao falar de “ideologia de gênero” é algo que foi construído pelas raízes do que viria a ser o bolsonarismo e que hoje está tão consolidado que será difícil dissolvê-lo. E vamos vendo isso sendo plantado aqui e ali, em outras partes, na América do Norte e na Europa. O medo é o mobilizador por excelência da extremadireita. Uma vez plantado, não é preciso atiçá-lo a todo o momento, ele alimenta a si próprio.

Todos estes movimentos de extrema-direita se alimentam da atenção online e investem muito no YouTube, onde a Sabrina tem sido uma figura pedagógica na contracorrente. Qual é a importância da esquerda aprender a comunicar dentro destes meios tomados pelos discursos da direita radical?

esquerda ainda tem muito caminho pela frente em relação ao uso dos meios digitais. O YouTube, por exemplo, foi negligenciado pela esquerda brasileira por muito tempo. Olavo de Carvalho estava lá desde os primórdios e os youtubers de direita fortaleceram-se na plataforma muito antes de sequer existirem youtubers de esquerda ou progressistas. Ainda há um certo preconceito, inclusive, em relação à figura do “youtuber“. O termo ainda é usado de forma pejorativa. “É youtuber, fala qualquer coisa, não tem substância”.

Nos últimos tempos, todavia, vendo o peso que o YouTube teve na eleição de Bolsonaro, tem havido um investimento maior. É importante enfatizar que a comunicação tem de ser diversa. É preciso alcançar pessoas com interesses diferentes, porque os conteúdos chegam a cada pessoa de maneiras diversas. Em termos práticos, teria de se conceber um ecossistema de táticas digitais com o qual se trabalharia para, por exemplo, se desmentir concertadamente algo que foi falado. Na Internet não basta reagir.

Compartilhar um conteúdo para poder falar mal dele apenas o fortalece, alimentando o algoritmo. E eu aqui não digo criticar ou desmentir. Simplesmente falar mal. Dizer “isso é um absurdo”, “isto não é possível”. Esses conteúdos vão chegando cada vez mais longe. Haverá um momento em que chegará a pessoas que jamais teriam recebido aquele conteúdo, sem a ressalva de que é um absurdo. Temos de tomar cuidado com esse engajamento equivocado.

Por outro lado, há a tarefa de fazer educação política. É um trabalho que não vai ser resolvido com um grupo de WhatsApp, com um canal de YouTube, com uma conta de Instagram. Precisa ser parte de algo maior que atravesse as organizações políticas através de uma estratégia bem pensada.

Para onde vão essas pessoas depois do seu vídeo? Para quem tem um projeto de educação política, como eu, aquela informação passada nunca será suficiente se as pessoas não começarem a se organizar em coletivossindicatosmovimentos sociaispartidos. Lugares onde aquilo que aprenderam e o seu pensamento crítico possam ser transformados em políticas concretas que por sua vez darão sentido ao que se aprendeu.

Caso contrário, será só mais uma análise que está na Internet, “esta opinião versus aquela opinião” e acabará parecendo um teatro, onde ouvir uma “opinião contrária” pode acabar por validar o discurso de ódio.

O bolsonarismo foi ajudado por essa desatenção da esquerda? Foi culpa da conciliação política promovida pelo PT ou da melancolia transversal da esquerda, de que fala no seu livro?

direita não foi incompetente. Teve uma tática de bastante sucesso, de 2013 em diante, ao aproveitar a ebulição de uma crise de representatividade na política nacional para se posicionar de uma certa maneira. A ideia foi: “se ninguém representa vocês, talvez nós possamos fazer isso”. E eles fizeram isso muito bem. Mas essa crise de representatividade não surge do nada, é herdada do passado. Não diria que é uma questão de culpa, mas a esquerda deixou brechas abertas por conta de como se movimentou nos tempos anteriores. Isso vale tanto para a esquerda governamental como para a esquerda da oposição.

O elemento da melancolia é muito importante para explicar esse fenômeno. Há uma esquerda no governo que já diz que não é possível fazer muito mais do que está sendo feito, porque a correlação de forças não é favorável e se ousar demais leva um golpe. E o resultado é que não ousou demais e levou um golpe mesmo assim. Temos, agora, a preocupação de entender se essa esquerda que ocupou a institucionalidade no Brasil aprendeu essa lição.

Por outro lado, há uma esquerda radical menor, frustrada com essa hegemonia da esquerda institucional e que se queixava que o PT tomava conta de tudo e hegemonizava os espaços. É muito estranho culpar o outro pela sua própria falha. Porque é lógico que o PT vai hegemonizar: o PT tem um projeto de hegemonia. Depois, vemos aquela melancolia de remoer as vitórias que nunca teve ou sequer pôde ter. É um objeto de desejo que foi perdido antes mesmo de se concretizar. E fica nesse ciclo.

Hoje, na conjuntura brasileira, ficamos numa posição curiosa. A hegemonia do PT e do lulismo posiciona-se de maneira a ser a única opção para derrotar Bolsonaro. Muitos desses setores – que passaram um bom tempo reclamando da hegemonia do PT – acabam tendo que construir essa campanha. Escolhem remover Bolsonaro, taticamente, mas com uma certa aposta de programa, contando que Lula se colocará, por momentos, mais disposto a radicalizar-se em certos elementos.

Essa convergência é alimentada, mas a própria conjuntura coloca imposições em que é necessário fazer certos acordos e esperar certos sectarismos em questões pontuais. Não diria que há hoje uma movimentação na esquerda brasileira para a unidade. Vemos coisas agregadas a um programa eleitoral e isso não significa que esse programa eleitoral vai ser realmente concretizado como programa de governo.

Fala no seu livro que o golpe se dá porque a “burguesia não poderia esperar por mais um ciclo eleitoral”. Como se relaciona essa burguesia com a ascensão e permanência de Bolsonaro? E Bolsonaro foi para lá daquilo que ela queria enquanto resposta à hegemonia do PT?

Essa fase autoritária está muito relacionada com a maneira como se administra uma crise. Seja de representatividade – aproveitando a oportunidade política -, seja a própria crise econômica para onde o Brasil já estava caminhando.

Nesse caso, havia uma burguesia que não queria partilhar um bolo que estava encolhendo. A campanha de Lula e a própria candidatura chegam novamente com a ideia de uma política de conciliação, apesar de haver muita gente na base do petismo e do lulismo que rejeita esse termo. Mas é o que temos: alianças muito amplas com interesses antagônicos. Há alguns meses, Lula disse que quer fazer a reforma agrária, mas também trabalhar com o agronegócio.

Essa é uma contradição muito grande. A reforma agrária vai bater na questão da propriedade. Bastaria gerir e distribuir melhor a propriedade que ela já geraria a oportunidade de contribuir para a economia brasileira sem se necessitar do agronegócio.

Mas essa promessa de Lula não é a que ele já havia feito há 20 anos? E essa burguesia assustada não veria um retorno conciliatório de Lula com bons olhos?

É algo que está presente desde sempre. Não teria eleição de Lula [em 2002] sem a base do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). E o MST está sendo novamente central nessa campanha, representando o apoio popular.

Há quem considere que com Bolsonaro as coisas não foram tão simples assim para parte dessa burguesia. Haverá pessoas da elite brasileira que consideram que Bolsonaro fez uma péssima administração da pandemia ou que a inflação descontrolada atrapalha o poder aquisitivo da população. E há quem não partilhe os valores de um conservadorismo cada vez mais abusado.

Uma parte da burguesia brasileira vê-se disposta a dar uma segunda tentativa a Lula, mas não diria que é uma elite de futuro. É a mesma que estaria disposta a dar o golpe novamente, se necessário.

Chegamos a um momento em que Lula pode posicionar-se de uma maneira que não é ameaçadora para o mercado, tornando-se possível estabelecer relações que Lula está disposto a firmar. Parte desse raciocínio baseia-se em ter um vice-presidente mais à direita, fugindo de uma candidatura puro-sangue.

Lula traz Geraldo Alckmin para a sua candidatura, afirmando que este teria caminhado um pouco mais ao centro, que saindo do PSDB e indo para o PSB ele teria saído da direita, mas trocar de partido, no Brasil, é como trocar de roupa. E não significa necessariamente trocar de projeto.

A ideia é que Alckmin, estando ali, representa simbolicamente o tipo de abertura que Lula está disposto a fazer. Isso traz uma certa estabilidade e poderia, na avaliação de certos analistas, ser uma forma de garantir que Lula vença a eleição no primeiro turno e consiga segurar uma possível tentativa de golpe e governar nos próximos quatro anos.

No fundo, Lula quer trazer uma perspectiva bastante ampla de governabilidade, mas vai criar uma crise justamente porque terá que gerir interesses muitos diferentes. A grande pergunta para o hipotético próximo governo Lula é: na hora em que esses interesses antagônicos baterem de frente, que escolhas serão feitas?

Na hora desse embate é o lado do povo que tem que ganhar, teremos que colocar gente na rua. Se o povo está na rua e quer aquela política, então é essa política que tem que ser implementada. O próprio Lula terá de ter isso em mente para convocar o povo à rua, se necessário.

Como disse há pouco, estão contando os dias para o retorno de Lula, de forma quase messiânica. Isso não é um problema para a mobilização popular, que o empurra também para um projeto de conciliação?

Outra contradição. Historicamente, é muito mais fácil mobilizar ao redor de uma figura que vai resolver os seus problemas, porque significa que não terá de ser você a resolvê-los. Lula se enquadra nessa figura há muito tempo, pelo carisma e a maneira como fala e mobiliza as pessoas.

O problema é que as pessoas não se enxergam como sujeito político. Tratam apenas o representante eleito como alguém que realmente está na política, que “entrou para a política”. Isso está tão enraizado que é natural ver na figura de Lula alguém que poderá resolver os problemas. Isso é uma armadilha para o próprio Lula.

A principal contradição carregada nesta campanha é que para conseguir trazer os votos necessários e garantir uma eleição no primeiro turno – útil até para resistir a alguma tentativa de golpe vinda do bolsonarismo -, é preciso mobilizar em torno de Lula.

Ao mobilizar demais, todavia, promove-se um ciclo de despolitização na população. Isso coloca tanta pressão em cima da figura de Lula que, se naqueles primeiros 100 dias de governo ele não conseguir trazer uma melhoria concreta e imediata para a vida das pessoas, ele pode ter um desmoronamento da aprovação pública.

Gabriel Boric, no Chile, está com um nível de reprovação muito alto. Na crise de representatividade chilena muita gente colocou as fichas em eleger aquela figura, acreditando que as coisas iam melhorar. O desafio principal de Boric, agora, é aprovar a nova constituição em meio a um ambiente em que a extrema-direita trabalha fortemente para destruir a capacidade de sucesso da constituinte.

Falando no Chile, vimos agora uma eleição histórica na Colômbia e antes como o golpe na Bolívia foi revertido. Tudo parece encaminhado para virar também no Brasil. Não é perigoso acreditar em mais uma “maré rosa”?

Me preocupa bastante que a gente esteja voltando para essa análise. A “maré rosa” anterior carregou várias contradições que abriram brechas para golpes, como na Bolívia e no Brasil, e para governos extremamente neoliberais, como na Argentina. É uma análise concreta do que está acontecendo, mas a gente deveria olhar para isso não só com cuidado, mas também com pesar. É uma pena ser simplesmente rosa. Poderíamos tentar algo mais radical.

No caso colombiano, a esquerda colombiana nunca governou, há uma necessidade de tentar algo novo. Creio que não haveria essa vitória se a vice-presidenta não fosse a Francia Márquez, porque mobilizou as periferias da Colômbia de uma maneira que apenas Gustavo Petro [presidente-eleito] não conseguiria e trouxe para o centro do programa algumas pautas mais marginais e que o radicalizaram. A radicalização dessa campanha, e a consequente vitória dessa candidatura, oferecem algumas ideias interessantes à América Latina.

Por outro lado, já vimos sinais preocupantes. Petro encontrou-se com Álvaro Uribe [ex-presidente]. É impossível fazer isso sem acabar legitimando de alguma maneira o uribismo. Mesmo o primeiro governo de esquerda da Colômbia terá que carregar essas contradições.

Contradições que podem dar, como já deram, em golpes autoritários.

Só esperar vencer essas contradições com um próximo governo já é uma aposta falida de partida. Isso só será possível através da mobilização popular e da construção de organizações alternativas que levem mais adiante as escolhas políticas. Há o perigo concreto de alguns desses governos não conseguirem cumprir nem as suas promessas mais moderadas. Nessa crise de representatividade geral, as pessoas vão dizer: “Está vendo? Apostei e deu no mesmo”. E o ciclo não acaba. Vem um golpe, um processo de destituição ou espera-se o ciclo eleitoral.

Vendo toda essa desfragmentação da esquerda um pouco por todo o mundo, qual seria então a alternativa internacionalista à crise autoritária?

A direita tem relações muito orgânicas através do sistema capitalista. Não são relações somente ideológicas, em que vão todos para congressos aprender entre si – coisa que eles também fazem -, mas relações orgânicas baseadas em interesses mútuos. Divergem aqui e ali, mas o interesse central da acumulação perpétua de riqueza continua central.

fragmentação da esquerda, por outro lado, dá-se apesar de haver interesses parecidos. Fala-se em combater a pobreza, a desigualdade, mas em termos de programa máximo – acabar com a acumulação perpétua e a lógica de exploração do sistema capitalista -, há muitas divergências. A maior parte da esquerda, podendo ser levemente anticapitalista, não é socialista, não é defensora de um sistema alternativo ao capitalismo. A maior parte da direita é capitalista e tem múltiplas visões sobre como administrar o sistema capitalista.

Se eles estão aprendendo entre si, nós temos que fazer a mesma coisa. Aí entra o internacionalismo na construção de algo para lá de campanhas de solidariedade. Não é só comunicar que a nossa organização se solidariza com o que está acontecendo aqui ou ali. É preciso entender quais são essas ligações de economia política que fazem com que um lugar esteja sendo enfraquecido e o que pode ser feito em relação a isso.

Qual é o papel do ecossocialismo?

ecossocialismo demonstra as relações do imperialismo ecológico: as relações entre fluxos de recursos que vão de um lado para o outro e como a qualidade de vida da classe trabalhadora de um lugar pode estar sendo sustentada pela falta de qualidade de vida da classe trabalhadora de outro lugar.

Temos que nos manter alerta. É preciso entender que temos muitos interesses em comum e capacidade de articular um projeto mais unificado. Basta olhar para a quantidade de agrotóxicos utilizada pelo agronegócio e que envenena gente em um local, na hora da produção, e pode estar envenenando as pessoas em outro local, na hora de consumir.

Não basta pensar em leis que digam que algo não pode ser comercializado na União Europeia, que esse tomate que vem da América cheio de venenos não pode ser vendido aqui. Em primeiro lugar, esse tomate não deveria ser comercializado de todo. Há elementos do internacionalismo que precisam ser tratados como questão de economia política, não como campanha de solidariedade, para pensarmos de que maneira os movimentos sociais, os partidos, os sindicatos, os coletivos, todas as diferentes formas de organização, devem cooperar em vez de competir entre si.

A questão da crise ecológica é aqui central. Faz-nos pensar em diferentes responsabilidades sobre a origem da crise, que as pessoas vão ser afetadas em todos os lugares do planeta, sendo que a capacidade de adaptação a esse impacto será desigual. Então, ela mostra que estamos juntos, sim, no mesmo barco, mas que o barco tem diferentes classes. É luta de classes: temos de tratar das questões de fluxos de capital e recursos como algo central na política além das nossas fronteiras.

Na semana passada, o Supremo Tribunal dos EUA aboliu o Roe v. Wade, esta semana restringiu a redução de emissão de gases poluentes. São também sintomas mórbidos de algo que está acontecendo no coração da principal potência do mundo?

A frase de [AntonioGramsci de onde tirei a expressão “sintomas mórbidos” refere-se precisamente a crises autoritárias. Temos o velho que está morrendo, mas não morreu ainda, nem quer morrer, e o novo que não quer nascer. Esses sintomas mórbidos aparecem e há uma impressão geral de que o novo seria algo necessariamente positivo. Estamos falando de uma crise de autoridade. Então, o novo que está para nascer pode ser o fim do mundo.

Essa crise, à direita, está sendo disputada também pelo fascismo. A direita tradicional está morrendo, não quer se renovar, e pode facilmente ser substituída pelo fascismo.

Nessa questão, vemos a possibilidade iminente e constante de perder conquistas. Se não continuarmos renovando a base que sustenta essas conquistas, isso vai acontecer. E vai continuar acontecendo. Se você não continuar lutando pela liberdade o tempo todo, como dizia Angela Davis, alguém vai ver que você deu mole, que há uma brecha, e vai retirá-lo dali sem cerimônias.

Falou há pouco do “fim do mundo”. O que a esquerda deve fazer para evitar resignar-se diante do fim do mundo, deixar de fetichizar o passado e olhar o futuro como possibilidade?

Essa transição já é uma contradição em si. É preciso deixar para trás algo que já não serve, mas estamos herdando as condições deixadas por isso. A transição relacionada com as mudanças climáticas terá de ser bastante radical, ao mesmo tempo que enfrentamos o grande problema de estarmos sob o capitalismo. E o capitalismo não vai deixar que essa transição seja radical.

O nosso papel é combater o capitalismo tradicional, o capital fóssil, mas também o capitalismo verde ou uma versão do ecofascismo, num enfrentamento direto. Tentar ganhar tempo de mobilização e de construção de base para algo que realmente supere o sistema capitalista e coloque um fim concreto a essa crise ecológica que não é simplesmente climática. Para fazer isso, é preciso um projeto de sociedade que seja ecológico como alternativa. Essa construção passa por contradições até no cotidiano: precisamos trabalhar sob o capitalismo quando é ele que causa os nossos problemas.

Isso exige um esforço muito coordenado que atualmente não encontramos na esquerda global. Exige que trabalhemos com planejamento e quantidade de recursos e que se fale de coisas que precisam deixar de existir e de indústrias que têm de decrescer. As pessoas ouvem falar em decrescimento e pensam em austeridade ou entendem que queremos piorar a sua qualidade de vida. O debate sobre decrescimento não tem nada a ver com isso, mas com reconhecer os limites materiais do crescimento econômico e a contradição entre crescimento econômico e crescimento material.

O próprio socialismo terá que lidar com isso.

Sim, ou enfrentará crises gigantescas. Há que tratar as limitações materiais da natureza com seriedade suficiente ou acabamos jogando o problema mais para a frente.

É imperativo reconhecer que já perdemos tempo demais. Isso não nos pode levar ao fatalismo de pensar: “é isso, não há mais nada a fazer e estamos caminhando para o fim do mundo”. Mas é preciso gerar um reconhecimento sério sobre a realidade de que hoje se está muito ruim, estará pior amanhã.

A nossa construção de alternativas tem de ser tão radical quanto o nosso medo do que pode vir amanhã. Infelizmente, a esquerda ainda está sujeita a acreditar em falsas soluções que nos fazem acreditar que temos mais tempo do que realmente temos, como sistemas de captura e armazenamento de carbono ou carros elétricos.

Não há capacidade material no planeta para converter todos os carros convencionais em carros elétricos. E que tipo de sociedade é essa em que todos esses carros não estarão emitindo gases poluentes, mas as cidades continuarão metrópoles gigantescas, congestionadas e perigosas? Onde se leva muito mais tempo a chegar a um lugar do que seria normal, porque se investe muito mais na construção e adaptação de estradas para transporte individual do que em uma malha de transporte público realmente conveniente para a população?

O carro elétrico atrasa-nos porque ainda se baseia em valores individualistas. E o transporte público não é inerentemente mau, nem lento, são as nossas prioridades que estão trocadas. Tratar dessas prioridades é absolutamente central para imaginarmos o amanhã, mas também confrontar o que já está dando errado hoje. Uma coisa não funciona sem a outra.

Sem falar que se manteriam as relações imperialistas na extração de recursos.


Sim. O lítio exemplifica uma competição material muito direta. Vamos produzir baterias para carros elétricos ou baterias para casas ou hospitais? Porque vamos ter que lidar com a intermitência das energias eólica e solar. O lítio bate de frente com isso, mas também falamos de cobalto, cobre, manganésio. Isso perpetua uma lógica de extrativismo que se acirrou com o colonialismo, se aperfeiçoou com o capitalismo moderno e foi completamente normalizada.

Está estabelecido que para avançarmos enquanto sociedade é preciso minerar. E, concretamente, não nos livraremos do problema da mineração. Viver como seres humanos neste planeta significa deixar o nosso impacto. O plano é diminuir a nossa dependência dessa mineração.

Temos de produzir menos coisas, acabar com a obsolescência programada, introduzir na sociedade a questão do reuso. Aí vamos entrar em conflito com os valores centrais que o capitalismo colocou dentro da cabeça das pessoas. Seremos obrigados a voltar à estaca zero e pensar o que é ser feliz na sociedade humana. Repensar o que é o bem-viver, o que é uma boa sociedade, o que é ter relações de vida mais ricas, mas não necessariamente ricas em crescimento econômico.

Isso não significa simplesmente substituir parâmetros quantitativos por parâmetros qualitativos. Ainda vamos ter que falar de questões quantitativas: quantidade de comida, quantidade de comboios. Temos que ter crescimento quantitativo porque a nossa população ainda está crescendo. Isso é importante, porque também nos obriga a inovar. Como é que as coisas podem melhorar?

O imperativo não pode ser a acumulação. O crescimento quantitativo tem de ser pautado pelo valor de uso, também, e a qualidade tem de gerir a quantidade. Mas aí teremos de reconstruir a noção social de “qualidade de vida”, que não poderá ser baseada num carro de luxo ou de ter cinco televisões ou trinta pares de calças jeans. Ter mais qualidade de vida talvez passe por haver mais festivais de música ou teatro, por ter a possibilidade de levar os seus filhos a um parque tendo que andar apenas dois ou três quarteirões. Isso nos coloca em uma posição de educação contínua sobre aquilo que nós – todos nós – queremos. E isso, no final das contas, chama-se politização.

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